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Revolução de 1923
Ditadura republicana no Rio Grande do Sul
Para manter este estado de coisas, ou seja, para conservar o poder, criou a Brigada Militar, uma corporação bem armada, instruída e atuante, tanto na capital quanto no interior.
Expectativa
O Rio Grande do Sul acostumara-se às disputas com os povos vizinhos. As correrias, os entreveros e as "califórnias" ajudaram a dar uma têmpera especial ao povo gaúcho. O sacrifício fê-lo cultuar o valor pessoal, a hombridade, a solidariedade e a lhaneza de trato.
O governo prolongado de Borges de Medeiros, de caráter personalista e aspecto ditatorial feria e afrontava o espírito liberal de grande parte do povo gaúcho. Um pequeno incidente seria suficiente para desencadear a revolta. Rubens dos Reys de Barcellos afirmou sobre o povo gaúcho: "Somos um povo acampado à espera do toque de reunir". (...) forjou-se um tipo, caracterizado pela combatividade, pela energia pugnaz, pelo ânimo agressivo, pelo amor da luta armada dos reencontros e das pelejas".
Em novembro de 1922, previa-se a realização de eleições. Novamente Borges de Medeiros apresentava sua candidatura pelo Partido Republicano, motivando agitação política. Pela Carta Constitucional, precisaria dos votos de três quartos do eleitorado para ser reeleito.
A oposição não dispunha de candidato capaz de fazer frente ao poder eleitoral governista. Seria preciso um candidato que conseguisse aglutinar os diversos partidos oposicionistas. O único nessas condições era Joaquim Francisco de Assis Brasil, mas estava afastado da política e se recolhera à sua estância de Pedras Altas. Um grupo de estudantes apelou ao velho Assis para que consentisse em sua candidatura e ele acabou por concordar, desde que lograsse obter apoio político do Partido Federalista, dos remanescentes do Partido Democrático e de dissidentes do Republicano.
Assis Brasil percorreu o Rio Grande em pregação cívica, mas ninguém acreditava que a oposição pudesse chegar ao governo, apesar do vigor com que defendia a sua campanha.
Não eram apenas dois homens que se defrontavam nas urnas naquele novembro de 1922 – eram dois princípios, dois ideais que não se associavam nem se confundiam.
Borges de Medeiros novamente reeleito
Ao final, efetivou-se a vitória de Borges de Medeiros, apesar dos protestos. Antes da posse, porém, já uma parte da oposição se levantara em armas.
De Carazinho, no norte do Estado, o deputado Artur Caetano telegrafou a Artur Bernardes comunicando achar-se à frente de 4 mil revolucionários dispostos a só largar as armas quando Borges de Medeiros deixasse o poder, a não ser que o Presidente da República resolvesse intervir para reintegrar o Rio Grande no sistema constitucional da União.
Embora o governo federal tivesse contas a ajustar com Borges de Medeiros, que negara apoio à candidatura de Artur Bernardes, viu-se obrigado a reconhecer como válida a eleição do poderoso adversário e ex-correligionário. Recusou a fórmula conciliatória de um tribunal arbitral para a apuração e em mensagem de 3 de maio de 1923 alegou não existir dualidade de poderes que justificasse uma intervenção, havendo perante o poder executivo central apenas um governo reconhecido pelo poder competente e declarou achar-se diante de uma situação que o obrigava ao respeito da autonomia do Estado, salvo mudança ulterior do aspecto da questão.
Os Bandoleiros de 23
O idealismo e o desprendimento foram características que marcaram o movimento revolucionário de 23, que pretendia, em síntese, eliminar o abuso de poder político no Rio Grande do Sul. Dos galpões, das faculdades, das estâncias e dos gabinetes levantou-se um grito uníssono de revolta. Reuniram-se com a mesma finalidade advogados, médicos, farmacêuticos, engenheiros, comerciantes, fazendeiros, empregados, peões tropeiros. Borges chamou-os de bandoleiros – designação que os revoltosos adotaram com orgulho. Estavam lado a lado representantes da aristocracia cultural, das famílias mais tradicionais e o gaúcho simples e inculto do interior. Não havia indiferentes. Ciosos de seus deveres e de seus direitos, reivindicavam a prerrogativa de viver dentro das normas do sistema democrático, “em harmonia com o destino da Pátria Grande, em que não só geográfica como politicamente, deve estar integrado o Rio Grande do Sul.”
Os revolucionários quase não dispunham de armamento, munição e equipamento. O meio normal de transporte era o cavalo. Alguns tinham adagas, boleadeiras, revólveres; outros possuíam Winchesters, Comblains, Mannlinchers e armas de cartucho para caça. Organizavam piquetes com lanças de madeira de lei, havendo poucos que usavam espada. Não poderiam contar com a vitória sem o auxílio federal, vagamente prometido. Procuraram criar condições para a intervenção federal, lutando contra as tropas da Brigada, bem instruídas e armadas comandadas pelo Coronel Emílio Massot. Era uma espécie de ressurgimento do "quixotismo consciente" que os levara ao campo da luta tantas vezes.
Não lhes sobrava outra tática senão a da guerrilha rural; era preciso fustigar as tropas borgistas, evitando o cerco e o combate decisivo. As diversas formações (tropas, grupos, colunas, brigadas e divisões) atuavam de forma independente.
As tropas borgistas eram dotadas de fuzis Mauser e de metralhadoras pesadas. Pouco antes do início da revolução, Borges de Medeiros encarregara o Intendente de Uruguaiana, José Antônio Flores da Cunha, da compra de 400 fuzis Mauser e 120 mil cartuchos calibre 7,65 na Argentina, para complementar a já existente. A estrada de ferro estadual (RVFRGS) transportava as tropas legalistas e a Brigada de Oeste, de Flores da Cunha, chegou a empregar coluna motorizada na procura de contato com as tropas de Honório Lemes. Em todos os quadrantes do Rio Grande o governo organizara brigadas e forças provisórias para cooperar com a força estadual – a 1ª Brigada, ao norte comandada pelo General Firmino de Paula, com seis corpos, a 4ª, no nordeste, comandada pelo Coronel Firmino Paim Filho, com seis corpos, a 3ª, no sul, do Coronel Juvêncio Lemos, com quatro corpos, no centro a do Coronel Claudino Nunes Pereira, a 5ª, com seis corpos, e a oeste a 2ª, comandada pelo Coronel José Antônio Flores da Cunha, com o 2º Regimento de Cavalaria da Brigada Militar e com os Fronteiros da República, a cinco corpos. Além das brigadas havia vários corpos provisórios e isolados: o de São Borja, comandado pelo Dr. Getúlio Vargas; o de Osório, pelo Tenente-Coronel Alfredo Weber; o de São Luís, pelo Tenente-Coronel Raimundo Neto; e o de Guaporé, pelo Tenente-Coronel Paula Feijó.
Embora animados pelo mesmo espírito de luta de 93, os bandoleiros de 23 portaram-se como civilizados. A prática da degola e os lemas castilhistas de "quem não é amigo é inimigo" e "ao adversário não se poupa, nem bens nem pessoa", não foram aplicados. As tropas revolucionárias respeitavam os bens e as famílias dos adversários e as amizades pessoais sobrepujaram as diversidades ideológicas. Os revoltosos repetiam as audazes façanhas guerreiras de seus antepassados, sem se mancharem em desmandos e atrocidades.
As tropas federais mantiveram-se neutras. Às vezes alguns oficiais ou sargentos do Exército imiscuiam-se nos confrontos, mas não passaram de casos isolados.
"O Dr. Borges nos obriga a isso"
Com pessoal de Bagé, Dom Pedrito, Lavras, Caçapava e São Gabriel formou-se a 3ª Divisão do Exército Libertador que operou na região centro-sul. O que a oposição possuía de mais destacado e representativo nessas cidades fazia parte das fileiras revolucionárias, cujo comandante era o General Estácio Xavier de Azambuja, veterano de 93.
Na região sul, atuou a 4ª Divisão do Exército Libertador, comandada pelo General José Antônio Neto, de 72 anos. Essa tropa celebrizou-se pela freqüência com que conseguia iludir as colunas borgistas, nunca se deixando surpreender e conseguindo sempre fustigar o adversário. Dentre suas numerosas façanhas, salienta-se a tomada de Pelotas que ficou ocupada por quatro dias e onde conseguiu entrar a pé, reabastecendo-se de víveres e munições.
Leão de Caverá
A mais destacada das tropas revolucionárias de 23 era constituída por gente de São Francisco de Assis, Rosário, Alegrete, Quaraí e Uruguaiana; obedecia ao comando de Honório Lemes, conhecido como o Leão de Caverá.
Coube-lhe operar no terreno mais desfavorável ao tipo de luta empreendida, porque a região da chamada campanha do Rio Grande só dispõe de suaves ondulações e de vegetação rasteira, o que dificulta ocultar a presença e a movimentação de tropa face ao inimigo. Honório Lemes enfrentou também o adversário mais brilhante e pertinaz, o Coronel Flores da Cunha, que era auxiliado pelas forças do Coronel Claudino e pelo próprio comandante geral da Brigada Militar, Coronel Amadeu Massot.
Honório Lemes não tinha o aspecto e a sobranceria dos caudilhos tradicionais. Tratava a qualquer soldado como a um igual. "Confiava em seus homens, que por sua vez lhe retribuíam a confiança, e não os importunava com detalhes". O efetivo de sua tropa chegou a atingir cerca de 3 mil homens. Lemes era um chefe carismático. Usava um linguajar típico, entremeado de corruptelas e com inflexões peculiares à gente do sul; era sagaz e inteligente; ditava as ordens "com termos certos, frases sóbrias, adequadas, com o ritmo e as pausas indicando e a espécie qualitativa da pontuação". Alguns chegavam a admitir que "a sua atuação nessa luta o colocava na vanguarda dos guerrilheiros da América do Sul".
Logo depois de rebelar-se em Vacaiquá e assumir em Alegrete uma função de chefia, Lemes ocupou Rosário e Quaraí, então desguarnecidas, e depois (30 de março) marchou sobre Uruguaiana, defrontando-se pela primeira vez com as tropas de Flores da Cunha. Parece que seu intento era fazer de Uruguaiana a sede de governo do candidato libertador, criando as condições de dualidade de poderes necessárias à intervenção federal. Durante três dias cercou a cidade, mas, faltando-lhe munição e outros recursos, não teve outra alternativa senão levantar o assédio.
"Este é meu! Deixem este pra mim!... Atendam os outros. O vulto do revolucionário destacou-se por instantes, solito, parado, quieto, como resignado à espera do destino, ao lado do seu cavalo morto; o agaloado representante do amor por princípio, no ímpeto em que ia deu de espora e esbarrou-lhe o cavalo em cima, para ultimá-lo, recebendo de golpe e de improviso, à queima-roupa, o tiro que o abateu; no mesmo instante e ao mesmo tempo, o fugitivo saltou-lhe no cavalo, que era excelente e deu boca; debalde os comandados, de súbito surpresos e atônitos com o inesperado do lance, tentaram sem poder alcançá-lo uma perseguição para vingar o chefe".
Honório seguiu depois para São Francisco de Assis, que as tropas borgistas, muito reduzidas, abandonaram, e daí para São Gabriel e Alegrete, onde se travou o renhido combate de Ibirapuitã.
Flores da Cunha ressaltou nesse episódio a bravura de combatentes incógnitos, como aquele que "ferido à bala no rosto, com orifício de entrada e de saída, quase exangue, dessangrando", tentava novamente montar para prosseguir na peleja; ou daquele outro que "debaixo de uma chuva de projéteis, à vontade, tirava os arreios de seu cavalo morto e encilhava outro, que trazia a cabresto, de depois de apertar a cincha, ainda fez o gesto costumeiro de todo o homem do campo: segura em ambas as cabeças do lombilho, acomodando-o para que se assentasse melhor no lombo do cavalo".
No combate de lbirapuitã morreram os chefes revolucionários Maurício de Abreu, Gabriel e Delfino Timbaúva e Guilherme Flores da Cunha, irmão do Coronel Flores da Cunha, que foi ferido assim como Oswaldo Aranha.
Sempre perseguido por tropas de Flores ou de Claudino, Honório combateu em Palomas, Passo da Cruz, Passo do Guedes, Vista Alegre e Poncho Verde. Percorreu os campos de Dom Pedrito, Quaraí e São Francisco, onde tombaram os defensores da cidade, liderados pelo Intendente Carlos de Oliveira Gomes. Prosseguindo para Santiago e São Luís, pelejou em Itaroquém, Carajazinho, São Lucas, Dilermando de Aguiar, Olhos d'Água, São Gabriel e no memorável encontro do Passo da Armada, descrevendo a Volta da Serra para aliviar ou salvar a coluna, acossada sem trégua.
Honório andava pelas imediações de Passo do Ricardinho, em Quaraí, em busca de munição, quando, apesar dos esforços em contrário do Coronel Flores da Cunha, foi alcançado pelos emissários do Marechal Setembrino de Carvalho, Ministro da Guerra, para a assinatura de um armistício.
Encontrando Honório Lemes, o Ministro da Guerra interpelou-o: "Mas afinal, o que é que os senhores querem?" Sem titubear, o inculto fazendeiro que chegara a general no curso da revolução respondeu: "Nós queremos leis que governem os homens e não homens que governem as leis".
Trégua
Antes de seguir para o Sul, Setembrino avistou-se com Assis Brasil no Rio de Janeiro, colhendo opiniões e preparando-se para a tarefa.
Ao chegar a Porto Alegre, quando se entendia com Borges de Medeiros, ocorreu em frente a seu hotel uma manifestação popular, sendo os participantes dispersados a tiros pela Brigada.
Setembrino então disse a Borges: "Mas sua polícia está matando o povo", e recebeu como resposta: "A polícia está cumprindo com o seu dever e defenderá a ordem, seja contra quem for!"
Pacificação
Os esforços do Marechal Setembrino de Carvalho não foram em vão. Assinou-se a 7 de novembro um acordo provisório de armistício e a 14 de dezembro lavrou-se o tratado de paz, ao mesmo tempo que se recolhia a assinatura de Assis Brasil em sua estância de Pedras Altas e a de Borges de Medeiros no Palácio do Governo, em Porto Alegre.
O Acordo de Pedras Altas, como ficou conhecido, trazia para o Rio Grande, em troca de mais um período de governo de Borges de Medeiros, com término em 1928, a proibição da reeleição, conforme o padrão federal.
Transigia Assis Brasil por saber que "mais que um homem vale um sistema"; transigia Borges de Medeiros, abrindo mão de suas exigências de intocabilidade da Constituição que lhe garantia, por tanto tempo, o acúmulo do poder Executivo e do Legislativo, e a reeleição consecutiva, comprometendo-se à reforma da Constituição castilhista.
O pacto realmente significava a derrocada do sistema contra o qual nada pudera, 30 anos antes, a longa e cruenta Revolução Federalista de 93 que buscara anular a Constituição Estadual elaborada por Júlio de Castilhos.